
Por que Proibir Software Livre em Licitações é um Erro Estratégico
Um cenário que preocupa
Em pleno século XXI, quando países desenvolvidos caminham rumo à soberania digital e à transparência pública, ainda é comum nos depararmos com licitações no Brasil que, de forma explícita ou indireta, impedem o uso de softwares de código aberto. Essa exclusão representa não apenas um atraso tecnológico, mas uma ameaça real à autonomia do Estado, à eficiência administrativa e à inovação sustentável. Apresento abaixo algumas evidência de como o software livre pode beneficiar o serviço público:
Exemplo 1: Um exemplo europeu de transição inteligente
A Dinamarca acaba de anunciar um movimento ousado: substituirá, de forma gradual, o uso de soluções proprietárias amplamente adotadas por alternativas baseadas em código aberto. A decisão, liderada pelo Ministério da Digitalização, abrange todos os funcionários da pasta e deve estar concluída até o fim do ano. A motivação é clara: reduzir a dependência de fornecedores estrangeiros e aumentar o controle sobre a infraestrutura digital do país.
Essa mudança, noticiada por veículos como ZDNET e The Local, revela um posicionamento estratégico em favor da soberania tecnológica e da sustentabilidade administrativa — um exemplo que merece atenção no cenário brasileiro. Justamente ao contrário do que algumas administrações alegam para rejeitar software livre — falta de garantia de continuidade ou baixa qualidade —, o modelo aberto garante à própria administração pública soberania sobre o código, a possibilidade de auditá-lo, adaptá-lo e evoluí-lo conforme suas necessidades, sem depender de fornecedores exclusivos.
Exemplo 2: NASA – ciência e inovação construídas com software livre
Outro caso emblemático é o da NASA. A agência espacial dos EUA utiliza amplamente software livre em projetos de ponta, como o helicóptero Ingenuity, que realizou seu primeiro voo em Marte em 2021 como parte da missão Mars Perseverance. O sistema de controle da aeronave, denominado F Prime, foi desenvolvido pelo Jet Propulsion Laboratory (JPL) e publicado como código aberto em 2017, permitindo colaboração e reaproveitamento por outros projetos e instituições. A iniciativa contou com mais de 12 mil contribuidores indiretos via dependências de projetos open source, conforme registrado no GitHub: confira aqui.
Mais do que usuária, a NASA é também produtora e promotora de código aberto. Ferramentas como Astropy, utilizadas em projetos astronômicos, somam milhares de citações científicas, e o próprio software de calibração do telescópio James Webb foi publicado em repositórios abertos, incentivando testes e colaborações por cientistas de todo o mundo.
Exemplo 3: Na telefonia, o caso do Asterisk
Na telefonia, o exemplo do Asterisk é paradigmático. Criado em 1999 por Mark Spencer, este software livre de comunicação IP revolucionou o setor, permitindo que empresas de todos os portes implementem centrais telefônicas (PBX) com funcionalidades sofisticadas sem os altos custos de soluções proprietárias.
Distribuído sob a licença GNU GPL, o Asterisk é utilizado em mais de um milhão de sistemas em mais de 170 países, abrangendo desde pequenas organizações até uma significativa parte da Fortune 1000. Sua popularidade se deve à robustez, flexibilidade e ao forte apoio da comunidade open source, que constantemente contribui com correções, recursos e patches de segurança.
Além disso, o projeto segue ativo e em constante evolução. Atualmente, a linha Long Term Support (LTS) mais recente é a versão 22.4.1, lançada em 19 de maio de 2025, trazendo melhorias de segurança (como correções para cabeçalhos SIP malformados) e novas opções de configuração para maior controle e proteção asterisk.org.
Esse panorama mostra que soluções open source podem oferecer qualidade, continuidade e garantias técnicas tão confiáveis quanto modelos proprietários — e com transparência total. Em licitações e contratações públicas, a justificativa de que software livre “não tem garantia” perde força: a própria instituição tem acesso ao código‑fonte, podendo manter ou evoluir o sistema de forma independente, contratar suporte especializado ou mesmo contribuir com a comunidade, assegurando continuidade do projeto.
O impacto negativo de restringir o software livre
Apresentamos abaixo algumas evidências de como o software livre pode beneficiar o serviço público, mesmo em setores de alta exigência como a telefonia:
- Menor concorrência: Quando limita a participação de software livre limita também a concorrência;
- Maior custo a longo prazo: soluções fechadas muitas vezes exigem licenciamento contínuo e suporte exclusivo;
- Dependência de fornecedores: o Estado fica refém de decisões comerciais externas;
- Redução da transparência: códigos fechados dificultam auditorias, correções e adaptações.
Software livre: uma escolha estratégica
- Auditoria e segurança: o acesso ao código permite detectar falhas e adaptar proteções;
- Flexibilidade técnica: maior capacidade de integração com sistemas diversos;
- Redução de custos: elimina gastos com licenças e amplia o investimento em desenvolvimento local;
- Autonomia tecnológica: fortalece o ecossistema nacional de tecnologia.
O que o Brasil precisa fazer
- Atualizar a legislação e os critérios de licitação, garantindo isonomia entre soluções abertas e fechadas;
- Estabelecer políticas públicas de incentivo ao uso de software livre no setor público;
- Capacitar servidores públicos no uso e gestão de tecnologias abertas;
- Fomentar ecossistemas locais de desenvolvimento e suporte técnico baseados em software livre.
Conclusão
Restringir software livre em licitações públicas é desperdiçar oportunidades de inovação, eficiência e soberania digital. Países e instituições líderes já entenderam o valor das soluções abertas. Cabe ao Brasil se alinhar a esse movimento, abandonando preconceitos e incorporando práticas tecnológicas que colocam o interesse público em primeiro lugar.